Nas últimas décadas, houve um consolidado entre muitos intelectuais e ativistas africanos um discurso reiterado de vitimização do continente. A narrativa é familiar: a África é vítima do colonialismo, imperialismo, capitalismo global, instituições financeiras internacionais e, acima de tudo, da Europa. Embora essa visão seja baseada em fatos históricos inegáveis, ela se mostra limitada e até perigosa quando se torna o eixo central da identidade política africana e sua posição no sistema internacional.
É inquestionável que o passado colonial tenha deixado notas profundas: estruturas de dominação, desigualdades econômicas e trauma social persistem em várias sociedades africanas. Reconhecendo isso é necessário. No entanto, insistir nesse diagnóstico como um ponto de chegada, e não em um ponto de partida, é um erro estratégico. A vitimização explica o passado, mas não constrói o futuro.
Pior que a paralisia teórica é sua consequência prática: desqualificação interna. Tornou -se mais confortável culpar o Ocidente do que enfrentar as falhas de nossos próprios líderes, corrupção endêmica, má gestão de recursos, fragilidade institucional, negligência nos sistemas de educação e saúde. Quando usado como escudo ideológico, a narrativa da vítima legitima a estagnação e perpetua um ciclo de dependência.
É aqui que um dos pontos mais negligenciados no debate sobre o futuro da África: o responsabilidade interna. A governança não é apenas medida para boas intenções, mas para a qualidade dos programas governamentais e a execução de orçamentos públicos. O caminho da prosperidade passa pela maneira como nossos governos coletam e geram recursos nacionais. Em muitos países africanos, os líderes ainda se comportam como proprietários estaduais. E por falta de informação, grande parte da população acredita que o dinheiro público pertence ao governante, sem perceber que esses recursos resultam de impostos pagos por todos.
Desde que o cidadão comum não saiba que o Estado pertence a ele e não exige contas, a lógica da impunidade continuará prevalecendo. O progresso não está na quantidade de recursos, mas em Como eles são usados. E essa escolha não depende de qualquer poder estrangeiro: é nosso. A ausência quase total de responsabilidade interna em muitos contextos africanos deve ser o centro de nosso debate político.
Não faltam exemplos de países que, também marcados por colonizações duras ou guerras traumáticas, foram capazes de se tornar Casos de sucesso econômico e social. Cingapura, depois de deixar o domínio britânico e a separação da Malásia, escolheu o caminho da meritocracia, educação e luta contra a corrupção. A Coréia do Sul, devastada pela guerra e um passado colonial japonês, tornou -se um poder industrial ao apostar em tecnologia e planejamento econômico. Vietnã, após décadas de conflito e ocupação, reformou sua economia com a política de Doi moi E hoje é uma das economias emergentes mais promissoras da Ásia.
Na América Latina, Chile e Costa Rica mostram que o progresso está ligado a líderes lúcidos, instituições funcionais e políticas públicas orientadas para o bem comum. A Costa Rica, por exemplo, aboliu o exército em 1948 e concentrou seus esforços em educação, saúde e sustentabilidade, tornando -se um dos países da mais alta qualidade de vida da região.
No entanto, é importante sublinhar que a África não está nas margens desses caminhos de transformação. Existem países africanos que, mesmo com poucos recursos, começaram a construir seus próprios modelos de governança responsável. O Botswana, após a independência do Reino Unido em 1966, manteve uma democracia estável, investiu em educação e fez uma gestão exemplar de seus recursos minerais, como o diamante com baixa corrupção e crescimento econômico consistente. Cape Verde, por sua vez, se destaca por estabilidade política, respeito pelas instituições democráticas e progresso na educação e saúde, tornando -se um exemplo de boa governança na África, apesar da escassez de recursos naturais. Esses casos provam que A história não determina o destino E que a decisão de mudar é interno, corajoso e possível.
Existem também efeitos psicológicos e culturais associados à vitimização. Alimenta o ressentimento, enfraquece a auto-estima coletiva e mina a capacidade transformadora da juventude africana. Ainda mais sério: impede que a África se afirme como um agente proativo e intencional no cenário global. O mundo respeita aqueles que propõem soluções, não aqueles que repetem lamentos.
Não é, é claro, apagar a memória histórica ou suavizar o passado. Trata -se de recusar que esse passado nos condene a uma posição perpétua de inferioridade moral e dependência política. A verdadeira descolonização é, acima de tudo, intelectual e estratégico. Requer coragem para enfrentar nossos próprios desafios e usar a memória como força crítica e não como uma prisão emocional.
A Europa não precisa ser tratada como inimiga. Sim, ele precisa ser visto com lucidez: reconhecer os erros do passado, sem impedir a construção de parcerias maduras e horizontais no presente. A cooperação internacional deve ser baseada na responsabilidade mútua, não na paralisação do ressentimento.
Ser uma vítima pode explicar a história. Mas não pode, nem deve ser o projeto político do futuro para a África. O continente precisa de um novo discurso, um discurso da consciência cívica, responsabilidade, construção e ambição. Somente então podemos, com dignidade, deixar a sombra de nossa dor e ocupar, com legitimidade, o lugar que merecemos no mundo.